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A essência

  • Fernanda Galvão
  • 5 de janeiro de 2025
A essência

Estávamos no banheiro, Loli e eu, encerrando nosso dia. Ela, passando despretensiosamente uma base fortalecedora nas unhas. Eu, escovando minuciosamente meus dentes. A seguinte pergunta despertou reflexões que culminaram neste texto, escrito nos 15 minutos subsequentes: “Mãe, eu que pinto as unhas muito rápido ou você que escova os dentes muito lento?”

 

*

 

Minha essência sempre foi acelerada… eu era um ser acelerado. Nasci chorando muito e assim permaneci por alguns intermináveis (como diz minha mãe) anos. Ainda sobre minha essência interferir diretamente na vida da minha Mãe, na fase em que ela me alimentava, mamei muito. Eu era insaciável. E permaneci assim até a infância. Acredito que só consegui trocar minha obsessão alimentar por seus seios cheios de leite quando fui apresentada aos doces. Cajuzinho, o docinho da moda dos anos 80, era o meu preferido. Eu costumava permanecer na mesa dos parabéns, nos aniversários em que ia, comendo docinhos até eles “azedarem” e eu passar mal. 

 

Eu era muito intensa… tão intensa e rápida que não conseguia caminhar. Eu só corria. Lembro claramente do meu Pai e minha Mãe, receosos pela minha integridade física, falarem: “Fernandinha, não corra. Caminhe”. Eu, como uma filha obediente, dava dois passos caminhando e em seguida, depois de uma checagem rápida que me assegurava que eles não estavam mais me olhando, seguia meu ritmo frenético habitual. Eu estudava rápido, fazia amizades rápido, me especializava em esportes rapidamente, me adaptava a novas experiências de forma muito rápida. 

 

Assim fui crescendo e percebendo como era interessante também ser rápida no volante, no trabalho, nas decisões (que certamente precisavam de tempo de maturação) e fui rápida e intensa também nas relações amorosas e de amizade que tive.

 

Casei, rapidamente, depois de ter conhecido meu marido um ano antes do nosso casamento. Fomos morar na Espanha onde rapidamente aprendi uma nova língua. Eu  queria ser Mãe, mas não queria esperar o tempo do meu marido. Para variar, acelerei um pouco o relógio e lá estava eu, grávida da minha primeira filha, sem saber muito bem como contar a novidade inesperada ao meu marido. Dois anos depois, acelerei de novo meu relógio biológico e novamente surpreendi meu marido com a notícia de uma segunda graviez, algo que ele esperava escutar dali a 2 meses. 

 

De repente, me vi com duas crianças pequenas e percebi que meu poder de aceleração não se aplicava a elas. Eu bem que tentei acelerar alguns processos, mas sempre esbarrava no tempo delas. E o tempo de cada uma era diferente do meu. E o tempo de uma era também muito diferente do tempo da outra. Como se três relógios tivessem sido ligados ao mesmo tempo inicialmente, mas cada qual com sua cadência, ia indicando horários completamente diferentes. Três cidades com fusos horários distintos num mesmo país. 

 

Minhas filhas me ensinaram a ser completamente diferente do que eu sempre fui. Me mostraram claramente a minha essência acelerada e passei a ter dúvida se esta essência não estaria agora ultrapassada, fora de moda. Por elas, comecei a desacelerar no trânsito. Desacelerei em casa também, na rotina invisível de dona de casa. Desacelerei meu caminhar. Minhas mãos e pés foram ficando mais leves… cheguei um dia até a sonhar que estava machucando minhas filhas, sem intenção, com meus movimentos rápidos e descontrolados. Eu não queria mais ser assim. Eu não podia ser assim. 

 

Desacelerei no trabalho também e passei a valorizar momentos que eu antes enxergava como dever. Paralisei o campo das amizades para fazer escolhas: algumas amigas antigas já não poderiam mais fazer parte do meu novo momento. Revi minhas escolhas alimentares e, quando passei a alimentar minha primeira filha com meu leite, me curei de uma bulimia que alimentava desde os 16 anos. Revi meu jeito de me exercitar. Desacelerei minha fala. Meu olhar. Meu toque. Desacelerei totalmente. E desacelerando, percebi que existia algo agressivo naquele meu ritmo antigo. Algo que não me fazia bem e nem aos outros que me cercavam. 

 

Hoje posso dizer que minha essência já não é a mesma daquele serzinho que nasceu há 43 anos. Posso dizer que conservo o lado bom e saudável de ter sido por muitos anos uma pessoa “plugada no 220”, mas que não é mais a velocidade máxima que me rege. E não é que a cidade também resolveu mudar seu limite de velocidade? Vias que antes permitiam que andássemos a 60 km por hora hoje permitem somente 40. Será que a cidade amadureceu, que nem eu?

 

Agradeço imensamente a imagem de Duane Mendes.