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Crônica de uma vida vegana

  • Fernanda Galvão
  • 14 de julho de 2024
Crônica de uma vida vegana

Nossa! Você é vegana então. Não sabia! Mas o que significa?

– Significa que eu não como nada de origem animal. 

– Mas, nem leite e ovos?

– Não, nada de origem animal. 

– Mas, nem peixe?

– Não… peixe é animal também, não é? (procuro levar na brincadeira)

– Mas você não gosta de peixe?

– Gosto… inclusive gosto tanto deles que decidi não comê-los. (sigo com o propósito de levar na brincadeira)

– Mas, e o ovo? Você não precisa matar a galinha para comer o ovo.

– Então, eu vi e li bastante sobre a indústria de produção de ovos. As galinhas poedeiras ficam todas confinadas, em gaiolas aramadas, minúsculas, recebendo alimentação transgênica, antibióticos, têm seus bicos arrancados porque, por conta do estresse, praticam canibalismo ou automutilação… para mim, isso tudo é muito violento. E já fizemos muitas modificações no organismo das galinhas, para que elas coloquem muito mais ovos do que naturalmente botariam.

– Mas, e as galinhas felizes, que botam ovo livres na natureza?

– Não acredito neste cenário romantizado.

– Mas, e o leite? O leite também não mata a vaca.

– Então… nestas leituras que fiz e documentários que vi, também entendi como funciona a indústria de produção de leite. (E lá vamos nós mais uma vez) As vacas são confinadas, vivem em pequenos espaços onde não conseguem nem se movimentar, recebem alimentação transgênica, antibióticos, são forçadas a engravidar para sempre terem leite, tem seus bezerros arrancados do convívio com elas logo após seu nascimento. Boa parte dos bezerros são mortos para alimentar a indústria de vitela e, os que seguem vivos, são confinados e recebem leite artificial, para que os humanos recebam o leite da mãe deles. 

– Mas se você não come nada de origem animal, o que sobra?

– Não diria “sobra”. Eu diria que excluindo os produtos de origem animal, abre-se um novo universo com muita abundância! Eu como muito mais cereais, leguminosas, raízes, legumes, verduras, frutas, fungos do que quando eu era onívora.

– Ah, mas eu não conseguiria. 

– Então… Precisei querer entender dos processos que envolviam cada produto de origem animal que eu consumia para daí desejar ser vegana. 

– Ah, mas eu não abriria mão de comer meu ovo todos os dias. Fora que amo queijo, amo muito. Sou apaixonada! E não conseguiria sobreviver sem carne… Amo carne mal passada, sabe? Aquele sangue que sai do bife, aquele churrasquinho do fim de semana.

(não sei que cara eu fico nestas horas)

– Mas Deus fez os animais para a gente se alimentar deles.

(a minha cara, que já deveria estar ruim, certamente piorou)

– E o homem come carne desde o tempo das cavernas. 

– Então… eu acredito na evolução. Se fossemos pensar assim, ainda estaríamos sendo puxadas pelos cabelos pelos homens das cavernas. Ainda estaríamos morando em cavernas. Fora que, naquela época, certamente não havia a abundância de carne que vemos hoje. Imagina a dificuldade que era abater um animal naquela época! Eles comiam muito mais alimentos de origem vegetal do que animal.

– Mas na vida animal os animais também morrem, não morrem? O leão não mata a zebra para se alimentar?

– Sim, mas o leão não tem escolha. Não podemos nos comparar a leões ou qualquer outro animal. Não faz muito sentido. E o objetivo do vegano não é que nenhum animal deixe de morrer. É que nenhum animal precise morrer para me alimentar.

– Mas, e tua família? São todos veganos então?

– Não. Eu sou a única.

– Mas eles comem a tua comida?

– Sim, eles adoram! A cozinha é um lugar onde a gente se encontra bastante.

– Mas você cozinha carne para o teu marido?

– Meu marido cozinha. Nós dois cozinhamos. Até minhas filhas já sabem fazer alguns pratos na cozinha. 

– Ah, ele cozinha? Mas fazendo churrasco, né?

– Não. Ele faz churrasco, mas ele ocupa muito mais que a churrasqueira.

– Entendi… Mas quando é você que está cozinhando, você faz carne para ele e as meninas?

– Não. Não consigo tocar em carne…

– Ah, então eles precisam comer comida vegana, se é você que está fazendo…

– Sim, mas eles amam. São super abertos, experimentam tudo, elogiam. 

– Coitados…

– Não entendi.

Silêncio 

– E, as vitaminas? Você não tem carência de vitaminas?

– Não tenho. E, você? Já verificou se você não tem?

– Ah, certeza que não. Eu como de tudo.

– Todo mundo está sujeito a ter carência, independente de ser onívoro ou vegano. Eu como muita verdura, como frutas, como muito feijão, lentilha, não como nada industrializado, compro muita coisa orgânica e nós fazemos a comida que comemos. Não temos costume de pedir delivery ou ficar comendo fora.

– Mas, e a vitamina B12?

– Eu suplemento.

– Ah, então você tem carência!

– Sim, mas é bem tranquilo suplementar.

– Ah, você precisa tomar na veia, né?

– Não… é uma cápsula.

– Todos os dias?

– Não, uma vez na semana.

– E, as proteínas?

– Estão bem, obrigada! (tento resgatar aquele bom humor)

– Você bate a meta?

– Qual é a meta?

– Ah, é muita proteína, né? Eu como bastante carne, como ovo e ainda suplemento com whey.

– Eu como bastante feijão, lentilha, grão de bico, ervilha, arroz integral, açaí puro, aveia, brócolis…

– Não suplementa?

– Não. Não uso nada que não seja natural. Estes suplementos são cheios de aditivos químicos e outros componentes sintéticos.

– Mas, e o desenvolvimento dos teus músculos?

– Eu percebo que meu corpo responde melhor hoje do que quando eu era vegana.

Nesta hora a pessoa me olha de cima a baixo e, sem me perguntar se pode, pega no meu braço.

– Pior que está com um bração mesmo. Como conseguiu?

– Treinando e comendo da forma mais natural possível.

– Você não engordou depois que virou vegana?

– Não… por que?

– Ah, porque a dieta low carb é baseada no consumo de proteína animal e me fez perder peso. Sem proteína animal, a dieta fica muito carbo, daí faz as pessoas engordarem.

– Hummm… não acho. Eu como vários alimentos proteicos, mas não gosto muito de reduzir os alimentos a um nutriente ou a calorias. O alimento é muito mais do que seu teor de proteína ou de calorias ou de carboidratos. Acho uma pena quem fica contando calorias ou observando o teor proteico de um alimento. Mas sobre a dieta low carb, como nutricionista, não acho que seja uma forma de se alimentar saudável. Tem uma meta alimentar proteica enorme, não segura, que faz as pessoas consumirem muitos produtos de origem animal e suprimirem os carboidratos, por imaginarem que isso trará definição muscular e emagrecimento. É uma dieta, a meu ver, desequilibrada, ácida, que pode levar ao desenvolvimento de câncer. Fora que você coloca a alimentação num lugar ruim, de obrigação, do não prazer. Tanto que muitas pessoas precisam inventar o “dia do lixo”, onde terão liberdade de comerem todas as “porcarias” que não consumiram a semana toda. Isso tudo não ensina ninguém a se alimentar da forma correta… só produz ansiedade.

– Mas você não usa nenhum suplemento alimentar? Creatina, whey, BCAA, cafeína, nitrato, beta alanina, ZMA…?

– Não. Como te disse, não uso nada industrializado e não tenho este objetivo de hipertrofia a qualquer custo. Prefiro seguir meu ritmo, me alimentando de forma natural.

– Vegana não pode usar nada na pele e cabelo que não seja vegano, né?

– Isso.

– O que você usa? 

– Eu uso shampoo e Condicionador em barra, de marcas que não só são veganas, mas que tem uma formulação com ingredientes naturais, sem ingredientes sintéticos.

E nesta hora eu percebo que a pessoa olha para o meu cabelo. Daí ela, novamente sem meu consentimento, pega nele.

– É bem macio… não é ressecado. Mas é fino, né? Você tem pouco cabelo.

– Sim, sempre tive. É genético.

– E, ser vegana não te ajudou?

– Me ajudou um tanto sim, mas não posso mudar minha genética, né? Eu não o pinto mais, nem faço alisamento, nada. Ele está com a cor natural. Tudo isso também ajuda a não deixá-lo mais fino ainda.

– Ah, sim. Você tem uns fios brancos, né? Vai assumir o grisalho quando aumentarem?

– Não sei… acho que está longe ainda para pensar. Por enquanto os fios que tenho não me incomodam em nada.

– Então não vai ao salão?

– Não. Encontrei uma cabeleireira bem perto da minha casa que corta muito bem e atende em casa. Eu e minhas filhas vamos a cada 3 meses lá na casa dela. É um ambiente bem tranquilo. 

– Mas não faz mão e pé?

– Faço, mas não é no salão também. Faço duas vezes ao mês, mas não pinto a mão. 

– Por que?

– Porque não gosto da ideia de usar produtos derivados do petróleo. E também, mesmo que pintasse com esmalte sem petrolato, não duraria nada porque estou sempre cozinhando.

– Você se depila? 

– Sim. 

– Ah… achei que tivesse deixado tudo natural, tipo aquelas mulheres que tem pelo no suvaco.

– Não, mas entendo que é uma escolha de cada pessoa. Respeito todas.

– Você usa maquiagem?

– Sim, mas também na linha vegana com ingredientes naturais. Não uso mais, por exemplo, rímel porque não achei um que fosse livre de petrolatos e que fixasse bem, mas confesso que também não me empenhei por procurar. Eu já usava bem raramente rímel quando não era vegana.

– Deve ser caro ser vegano…

– Por que?

– Porque os produtos custam mais. Isso tudo o que compra para passar no cabelo e rosto deve ser bem caro.

– Então, eu achei marcas que são muito comprometidas com o meio ambiente, então são produtos que duram muito. Podem até ser mais onerosos, mas eles são multifuncionais (um produto condiciona o cabelo e também pode ser usado para hidratar o corpo) e são bem duradouros. Por exemplo, o shampoo em barra que uso, dura cerca de 3 meses. 

– Mas esta parte de alimentação… queijo vegano, castanhas… Tudo isso é caro.

– Qualquer tipo de alimentação pode ser cara. Depende das escolhas que você faz. Eu compro castanha de compras coletivas, com preço bem menor. E queijo, por exemplo, é muito raro eu comprar para consumir. 

– Mas você compra orgânicos. 

– Mas eu comprava antes de ser vegana…

– Deve ser difícil comer fora de casa.

– Então… sempre que preciso comer fora, dou uma pesquisada antes para saber se o lugar tem opções veganas para mim.

– É… e também sempre vai ter salada para você comer, né?

– Ah, mas eu não vou sair de casa para comer salada, né? Não almoçaria ou jantaria uma salada. Não me sentiria alimentada.

– Estava pensando… se todo mundo virar vegano, não teria vegetal o suficiente para alimentar todos e, também, acho que desequilibraria o meio ambiente. O que você acha?

– Que estamos muito longe desta hipótese… muito, muito longe mesmo.

– E, o que te fez virar vegana? 

– Decidi primeiro me tornar vegetariana depois que descobri que para produzir 1kg de carne precisamos de 15 mil litros de água. Fora toda a questão do desmatamento para a pecuária, a produção de dióxido de carbono e metano, gases de efeito estufa, que resultam em toda a problemática de emergência climática que vivemos.

– Nossa…  Quinze mil litros… Mas tudo isso que o animal bebe?

– Não… é água virtual. A água que se usa para produzir os grãos que alimentam o animal está contabilizada, por exemplo. Inclusive tem uma lista de quanto se gasta de água para cada tipo de alimento e a carne vermelha está em primeiro lugar.

– Mas gasta água também produzir alimento vegetal, né? Por exemplo, no teu caso, que come bastante vegetal, comparado ao meu, que como pouco vegetal e um pedaço normal de carne, poderíamos gastar no total a mesma quantidade de água. Então eu, onívora, estaria poupando mais água que você, vegana.

Nesta hora eu respiro fundo, pego o celular e mostro a lista para ela ver que a diferença é grande entre uma cultura de vegetal e a produção de carnes e que a hipótese dela não era possível.

Depois de tudo isso, a pessoa come a sobremesa que eu fiz e fala:

– Nossa… até que é bom!

– (eu, surpresa com a reação) Até que é bom?

– Sim, por ser vegano, né? Mas é gostoso.

(entendo o pré conceito: se é vegano, deve ser ruim)

– Mas acho que não deveria chamar de doce de leite, já que é vegano. Porque quando me disse “doce de leite”, eu já pensei no doce de leite que eu como, de origem animal, e o gosto não é o mesmo. Você deveria batizar com outro nome. Inclusive várias preparações veganas vocês acabam usando o mesmo nome que usamos, né? Deveriam inventar outros.

– Então, acho que seria bem difícil inventar nomes desconhecidos para preparações que só não são feitas com ingredientes animais. Foram séculos de preparações sendo criadas, em diferentes culturas, para inventar novos nomes que as pessoas não iriam relacionar com nada conhecido. Relacionar com algo conhecido me ajuda até a matar a saudade de algo que escolhi parar de consumir. Então quando digo que como doce de leite, isso me ajuda a resgatar a memória afetiva que tenho do doce de leite que eu comia antes de me tornar vegana. Faço isso para me agradar. Você já come o de origem animal, né? Acho que não preciso me preocupar com a tua aceitação do alimento que eu faço para mim, que estou somente compartilhando contigo.

– Nossa, não sabia que você sentia falta de comer. Então volte a comer! Conheço várias pessoas que deixaram de ser veganas. Não se sinta mal por isso…

– Não… eu sinto falta, mas não a ponto de querer voltar a consumir. Não poderia deixar de ser vegana. Fiz uma escolha por muitas razões, ambientais, animais e também pela minha saúde. Não abriria mão de tudo isso para agradar meu paladar. Eu consigo administrar minhas memórias culinárias afetivas com as preparações que crio. Está tudo certo! Estou feliz e em paz. O veganismo, para mim, foi um processo de purificação. Despertar para isso me trouxe vários outros despertares… Agradeço muito por ter um dia iniciado esta mudança de vida.

E dou uma colherada bem cheia no meu doce de leite vegano.

Foto tirada pela minha filhota Lorena.