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Sempre carreguei em mim o desejo de cuidar. Quando pequena, cuidava do meu irmão como se fosse meu filho. Cuidava dos meus sobrinhos como se fosse uma irmã. Cuidava dos meus pais com a dedicação de uma filha. Esse cuidado com meus pais incluía idas ao supermercado, tanto sozinha quanto apenas para acompanhá-los, preparar sanduíches para os dias de campo do meu pai, fazer omeletes para as noites e ser companhia em programas que nem sempre desejava ir. Sempre cuidei mais dos outros do que de mim mesma.
Fazendo uma retrospectiva, percebo que muitas vezes deixei de ser amorosa e cuidadosa comigo. Quando ia a Porto Alegre visitar a família extensa e ficava como uma barata tonta, indo de um lado para o outro, aceitando todos os convites amorosos, eu não cuidei de mim. Quando me forçava a gostar de alguém que sabia que me queria bem, também não fui amorosa comigo. Quando estudei nutrição e enfrentei um distúrbio alimentar, bulimia, sem pedir ajuda, igualmente não me cuidei. Quando busquei agradar as outras pessoas e atender às suas expectativas em relação a mim ou à convivência com minhas filhas, descuidei de mim.
É muito simbólico que, na pandemia, morássemos em um apartamento pequeno. Quando tivemos que ficar isolados, meu marido transformou nosso quarto em escritório, cada filha ficou no seu quarto para as aulas, e eu me vi sem espaço. Fiquei itinerante na sacada de casa, usando a mesa das refeições para trabalhar. Após isso, nos mudamos para um espaço maior, uma casa. Como faço terapia online, nos dias dos encontros, me vi novamente buscando um espaço na casa… e só encontrei a lavanderia. A falta de espaço externo apenas evidenciava a carência de espaço interno que eu mesma não estava disposta a dar a mim.
Sinto que, com o passar do tempo, fui adquirindo a capacidade de redirecionar os cuidados que oferecia aos outros para mim. Começou de maneira mais artificial… eu parecia robótica, sempre na defensiva, com atenção e tensão totais. Hoje, posso afirmar que já consigo identificar o incômodo da iminência do descuido dentro de mim e não aceitá-lo.
Quando alguém me desvia do caminho que já havia traçado, numa situação que não costumo gostar, já consigo ser amorosa comigo ao agradecer a pessoa e dizer, respeitosamente, que naquele momento já tenho outros planos.
Quando escuto algo em uma conversa que não me agrada por discordar daquela opinião, consigo me descolar daquele discurso e colocar meu ponto de vista ou simplesmente entendo que a convivência com aquela pessoa não me faz bem e me afasto, sem sentir culpa por isso. Isso é ser cuidadosa comigo e com minhas opiniões.
Hoje, consigo deixar minhas filhas e meu marido fazerem programas que, nesse momento, não me agradariam, pois meu corpo e mente pedem repouso e quietude.
Consigo respirar, parar e refletir se desejo o que está sendo oferecido.
Consigo respirar, parar e analisar se quero a convivência que está sendo imposta a mim. Acredito que, se não me faz bem, devo considerar reduzir ou excluir.
Já desisti de conversar profundamente com pessoas muito próximas a mim, expondo meu incômodo em relação ao comportamento delas, depois de várias tentativas sem sucesso para a mudança de atitude. Isso é ser amorosa comigo, pois a expectativa de mudança e a frustração pela constância do comportamento do outro me deixavam emocionalmente esgotada. Entendi que esse esforço e dedicação devem ser direcionados às minhas filhas e meu marido, que são a família que construí.
Por muito tempo, menti para ocultar minhas necessidades e vontades, somente para não frustrar os outros, com receio de não ser aceita como sou. Hoje procuro sempre a verdade, pois me aceitei como sou e me sinto muito bem com as escolhas que fiz na vida, os caminhos que segui, o que construí e quem me tornei.
Recebi muitas críticas nesta trajetória, principalmente vindas de mim mesma. Ainda estou trabalhando meu lado crítico, buscando sempre entender meus tropeços e falhas e transformar tudo isso em humanidade e (r)evolução. Confesso que tenho gostado bastante de ser inacabada e imperfeita. É libertador ser assim e, mais ainda, me assumir dessa forma.
Consigo gentilmente conversar com minha filha e dizer-lhe que, muitas vezes, sinto que ela exige muito da minha atenção, o que me leva quase à exaustão. Antes, procurava dar essa atenção mesmo que isso me esgotasse.
Consigo abordar algo que faz parte do meu ser: a inquietude. Essa inquietude, em algumas ocasiões, me paralisa e me frustra, mas, em muitas outras, me leva a pensamentos e mudanças que considero muito importantes. Com essa inquietude, também adquiri facilidade para aceitar mudanças e me adaptar a elas. Consigo iniciar uma semana com uma rotina completamente diferente, obviamente programada por mim, e vivê-la como se já estivesse estabelecida há meses.
Já permiti abusos, tanto mentais quanto físicos, de pessoas que, no meu contexto atual, nunca seriam aceitos. Em alguns casos, eu pensava, após ocorrerem, que eram simples ações dos abusadores, mas hoje sei que todos poderiam ter sido evitados por mim ou enfrentados com a gravidade que realmente tinham.
Sei que ainda preciso avançar muito para me considerar tão amorosa e cuidadosa comigo mesma quanto sou com os outros. Às vezes, me pego pensando qual seria a equação perfeita para que, nesta jornada, eu não ultrapasse o ponto de equilíbrio e me torne egoísta. Talvez um toque a mais de maturidade e reflexão me ajudem nesse desafio. Que os 44 anos sejam realmente transformadores!