Não perca nossas receitas! Inscreva-se!
Lembro como se fosse hoje a sensação que tive a caminho do “leito de núpcias”, após ter me casado. Aquele dia, 1° de dezembro de 2006, ficou marcado para mim como o início da minha independência. Senti uma mistura de alegria, excitação e esperança por finalmente poder ser eu mesma.
No entanto, antes de me sentir assim, tive uma última experiência de despedida da minha condição de filha que busca agradar. A pedido do meu pai, logo após a troca de alianças, fui encaminhada por ele a conversar com a avó do meu marido para explicar por que não quis adicionar o sobrenome de sua família ao nome que me identificava há 25 anos. Essa era uma escolha minha, que não deveria ser contestada. Ainda insegura em me afirmar como uma mulher que valorizava sua identidade e seu nome, inventei que não poderia fazê-lo porque já tinha um passaporte pronto para viver na Espanha por um ano. Essa cena, que está registrada no vídeo do meu casamento, independentemente da gravação, permanecerá viva na minha memória.
*
Infância
Durante toda a minha vida A.C. (antes do casamento), fui uma pessoa controlada. Esse controle não era resultado de um equilíbrio emocional, mas da influência dos meus pais. Desde cedo, percebi exatamente o que os agradava e o que esperavam de mim. A aceitação deles sempre foi mais importante do que a sensação de liberdade, então eu “dançava conforme a música”. E a música dizia: não incomode seu pai, pois ele incomodará a sua mãe. Assim, qualquer aventura ou incidente, desde um suco derramado no tapete até o meu primeiro beijo aos 13 anos, eram encobertos pela minha mãe, permanecendo ocultos aos olhos do meu pai. Eu não tinha escolha.
Quando criança, eu gostava de estar perto dos meninos… talvez visse neles a liberdade que tanto admirava e que sabia ser impossível conquistar sendo uma menina. Em uma ocasião, por estar tão próxima deles, fui a única menina convidada para a festa de um amigo da escola. Chegando lá, uma prima do aniversariante, um ano mais velha (naquela época, isso parecia uma grande diferença de idade), se juntou a mim e recusou todos os convites dos meninos para brincar. Lembro de passar a festa inteira em cima de um muro (olha o simbolismo!), observando as brincadeiras dos meninos e ouvindo as críticas dela sobre o “universo masculino”. Saí de lá completamente frustrada.
Ainda falando da época da escola, todas as festas eram em formato de festa americana dançante: as meninas, que já tinham feito brigadeiros, bolos e pães de queijo com suas mães (enquanto os meninos levavam bebidas de qualquer lugar), sentavam em um banco, ao som de uma música romântica, aguardando os meninos as convidarem para dançar. Certa vez, sentindo a necessidade de assumir o papel dos meninos, incentivei as meninas a os pedirem para dançar. Como praticamente todas preferiram esperar, na primeira música lenta, levantei do banco e convidei um menino para a pista. Depois daquele dia, as festas começaram a alternar entre muitos momentos em que os meninos chamavam e poucos em que as meninas tomavam a iniciativa. Ali, senti que estava conquistando um espaço para fazer escolhas.
Na adolescência, nunca quis uma festa de 15 anos com bolo vivo e valsa, e mesmo quando fui à Disney, não gostei da experiência. O universo das princesas nunca me encantou, nem para admirar de longe, tampouco para parecer uma. Quando tive a oportunidade de me parecer com uma em meu casamento, para desgosto da minha avó, casei de calça jeans.
*
Jovem adulta
Voltando ao tempo D.C. (depois do casamento), poucos meses após a noite de núpcias, fomos morar na Espanha, pois meu marido havia conseguido uma bolsa de estudos para o mestrado. Como eu ainda não tinha permissão para trabalhar no país, passei meus dias dedicada à casa. Foram dias muito difíceis. Senti-me improdutiva, pequena, vazia… muito diferente do que havia imaginado viver. Felizmente, após pouco tempo de curso de espanhol e vivendo em Madrid, consegui meu primeiro emprego como “cuidadora de crianças” (niñera). Nesse trabalho, comecei a me sentir novamente capaz de conquistar o mundo; não apenas porque contribuía para o orçamento familiar, mas porque estava fazendo algo que amo: trabalhar.
Antes de voltarmos ao Brasil, pedi aos meus pais que encontrassem um apartamento para morarmos, meu marido e eu, pois já havíamos vivido um ano em “nosso cantinho” e desejávamos continuar assim. Infelizmente, não conseguimos encontrar esse espaço, mas felizmente fomos acolhidos pelos pais do meu marido. Esse período exigiu muito de mim, pois minha natureza é reservada, e eu acreditava que deveria me adaptar ao jeito da família de origem dele. Hoje percebo como perdi a oportunidade de mostrar, desde o início, que eu era diferente e que isso não significava que os desgostava ou os reprovava.
Após alguns meses procurando praticamente sozinha um apartamento para chamar de nosso, consegui um lugar perfeito! Como meu marido não tinha pressa em se mudar, por estar saudoso “dos seus”, enquanto ele viajava, organizei a mudança das poucas coisas que tínhamos e iniciei, por nós, uma nova fase da nossa vida como família. Esse movimento me custou muita energia, exigiu explicações minhas para a família de origem dele sobre o porquê da mudança, mesmo que fosse, para mim, óbvio um casal querer privacidade, e me fez sentir sozinha na busca por algo que parecia ser necessário apenas para mim.
Depois de cerca de dois anos casada, enfrentei uma depressão devido a diversas situações envolvendo o casamento. Eu não tinha energia para viver e cheguei a pensar que não valia a pena continuar nesse plano terrestre. Foi uma experiência traumática que me assustou profundamente, a ponto de decidir me separar, embora ainda amasse muito meu marido. Após a separação, cada um cuidou de si, e conseguimos nos reencontrar. Quando retomamos o casamento, lembro como foi difícil enfrentar o julgamento moral das pessoas que pensavam que eu havia me separado por estar com outro alguém, acreditando que “uma mulher nunca se separa para ficar sozinha; claro que já tinha outro em sua vida.”
Lembro também de uma observação que ouvi de alguém no nosso primeiro evento familiar, como casal: “por mim, você nunca mais voltaria a fazer parte da família. Se fosse minha mulher, nunca te aceitaria de volta. Inclusive, tentei apresentar umas amigas para o seu marido, mas foi ele quem não quis conhecê-las.” Foi doloroso perceber que as pessoas já não acreditavam mais na nossa união… lembro de ter que “prometer falsamente” que agora realmente permaneceríamos casados para sempre. Ao refletir sobre tudo isso, vejo o quão absurda foi essa situação: nós, que havíamos sofrido mais que todos, sendo pressionados a dar suporte e garantias aos outros. E eu, alvo de críticas machistas dolorosas, sem poder rebatê-las para não causar desarmonia entre pessoas com quem voltaria a conviver.
*
Mãe
Recordo-me também de quão difíceis foram as conversas com meu marido sobre termos filhos e filhas. Inicialmente, veio a negativa com uma condição que, para ele, era extremamente necessária: termos uma situação financeira melhor. O universo conspirou a nosso favor e, após poucas semanas, ele foi promovido. Então, retomei o assunto, mas ouvi que nosso apartamento não tinha estrutura para bebês. Esse argumento foi contestado imediatamente por exististirem redes de proteção e portões nas escadas; bastava contratar os serviços. Deixei a solução assentar e, após algumas semanas, com a esperança de ter uma filha ou um filho, voltei a discutir o tema, mas recebi mais um desafio antes de ser mãe: a necessidade de melhorar meu relacionamento com seus familiares. Na época, aceitei que realmente tinha parte da culpa por não ter a relação com sua família que ele desejava e, lá fui eu para a terapia. Eu estava determinada a ser mãe.
Lembro como se fosse hoje o quão traumáticos foram os dois dias que vivi na maternidade depois do nascimento da minha primeira filha. Perdi as contas das visitas que recebemos ao longo daquelas intermináveis 48 horas, assim como da sensação de invasão que me dominou. Fui desrespeitada naquele espaço sagrado, onde tive a primeira mamada da minha filha registrada pelo celular de uma pessoa da família, que ainda me questionava sobre como era a sensação de ter minha filha no peito pela primeira vez. Mais do que tudo isso, lembro perfeitamente o quanto me calei e consenti, tudo em prol da harmonia e da manutenção das tradições familiares. Depois, em casa, sentindo-me violentada por toda aquela situação, refleti muito e decidi que eu tinha o direito de querer paz e tempo para ser mãe, sem interferências externas. Para fazer isso, certamente causei desconforto em várias pessoas, mas entendi que meu papel como mãe era mais importante do que qualquer outro papel que outras pessoas pudessem ter na vida da minha filha.
Quando minha pequena tinha apenas dois meses de vida, aceitamos, após muita resistência da minha parte, o convite para passar a noite de Natal com a família ampla, em uma casa cheia de pessoas, inclusive fora do círculo familiar. Antes mesmo de irmos, pedi ao meu marido que conversasse previamente com a dona da casa para saber se haveria um quarto disponível para acomodar minha filha em um ambiente mais controlado. Quando chegamos, vi pessoas fumando dentro da casa, senti calor, havia muita movimentação e meu instinto materno gritou: “corra para o quarto”. Assim eu fiz. Dei o peito para minha filha sozinha e depois a fiz dormir. As pessoas foram sendo convidadas, aos poucos, para conhecê-la no quarto, e eu me mantive ali, pertinho dela. Naquela noite, também recebi críticas pelo meu comportamento considerado “exagerado” como mãe. Lamentei muito ter aceitado o convite, ter me esforçado para ir e ainda ter ouvido que meu jeito cuidadoso de ser mãe não agradou o público.
Depois que me autorizei a ser a mãe que eu imaginava, fui me libertando de várias amarras, deixando de me preocupar tanto com a opinião dos outros. Se minha filha estava dormindo, eu esperava que ela acordasse para ir a um compromisso, por exemplo. Se o compromisso era noturno, eu agradecia o convite, mas preferia não bagunçar sua rotina, pois eu acabava sofrendo, junto com ela, as consequências de uma noite mal dormida ou do agito de uma festa. Minha segunda filha nasceu e, mesmo tendo tido uma experiência de parto muito traumática que me deixou com uma anemia preocupante, quando deixei a maternidade onde ela nasceu, onde recebi poucas e rápidas visitas, sentia-me mais fortalecida como mãe do que nunca. Comecei a me permitir, inclusive quando estava fora de casa, dar as mamadas longe da presença de outras pessoas. Pode parecer estranho, mas até por isso eu era julgada. As pessoas queriam assistir à mamada, conversar comigo enquanto eu estava dando o peito, observar o bebê sugando, mas eu só queria estar a sós com minha filha, em silêncio, desfrutando daquele momento que era apenas nosso. Certa vez, estava fora de casa, em um quarto com a porta fechada, quando uma pessoa entrou para pegar algo. Ao me ver com a filha no peito, se aproximou e, simplesmente, ajeitou meu braço e a cabeça dela, como se, aos olhos dela, minha postura dificultasse a mamada. Essa cena foi tão surreal que eu não consegui reagir. Era o extremo da invasão.
A escolha do pediatra das minhas filhas foi uma questão que também deixou marcas em mim. Recebi algumas indicações de pessoas próximas, antes mesmo de dar à luz, mas, ao conhecer esses profissionais, não me identifiquei com nenhum deles. Com a data prevista para o nascimento da minha primeira filha se aproximando, aceitei a indicação da família e escolhemos como pediatra o médico que havia atendido meu marido e suas irmãs. Durante o tempo em que nos atendeu, nunca me senti à vontade com ele ou com sua auxiliar, que não pareciam demonstrar cuidado com minha filha.
Quando minha menor estava prestes a nascer, minha filha mais velha adoeceu e, na tentativa de conseguir uma consulta, depois de uma hora ligando repetidamente para o consultório, consegui falar com o pediatra. Ele fez uma comparação entre mim e outras mães, alegando que todas haviam conseguido consulta com ele, exceto eu, porque não me empenhei o suficiente. Naquele momento, com um atraso de dois anos, concluí, com a ajuda da minha mãe, que deveria procurar o pediatra que havia cuidado de mim e dos meus irmãos, já que era eu quem sempre levava minha filha às consultas. Foi uma decisão muito acertada. Pela primeira vez, fiquei feliz em levar minhas filhas ao pediatra que não apenas cuidava delas com muito carinho, mas também se preocupava comigo, mesmo eu já sendo adulta.
Quando minha menor tinha dois anos, vivi a experiência mais traumática da minha vida, na qual pensei que poderia perdê-la. Após várias visitas ao pediatra, diversos exames, uma febre persistente e respiração alterada, minha filha foi diagnosticada com pneumonia e, infelizmente, desenvolveu derrame pleural, o que exigiu uma cirurgia e uma recuperação na UTI. Meu pediatra acompanhou cuidadosamente todo o caso. Tivemos que interná-la à noite no hospital com urgência, pois a situação dela exigia uma cirurgia imediata. Na manhã seguinte, aguardando nos chamarem para a cirurgia, nervosa por tudo o que minha filha estava prestes a enfrentar e tensa com a demora para ir ao centro cirúrgico, recebi uma pergunta de uma pessoa em um grupo do WhatsApp: “Será que não foi negligência do atual pediatra? O pediatra antigo ainda está atuando e está disponível, caso você queira retomar as consultas com ele.” Lamento até hoje ter passado por isso nesse momento em que esperava apenas carinho, preocupação e acolhimento. Nunca imaginei receber uma crítica sobre uma escolha que eu tinha todo o direito de fazer, especialmente colocando em dúvida a qualidade do profissional que escolhi.
Para equilibrar um pouco e trazer um toque de humor para o meu relato, não posso deixar de compartilhar esta passagem maternal! Quando já tinha minhas duas filhotas, recebi de uma visita que me deu um livro dizendo ser fundamental a leitura para mães de meninas. Já desconfiei da recomendação, conhecendo sua postura conservadora. Quando abri o presente, encontrei um guia de bolso com várias regras de etiqueta para “meninas socialmente bem vistas.” Agradeci e, assim que ela saiu da minha casa, tive a irresistível vontade de depositar o presente delicadamente no lixo reciclável, desejando que ele pudesse se transformar em um guia de bolso que fortalecesse as meninas a fazerem o que quisessem de suas vidas.
*
Vegana
Assumir o veganismo também ajudou a me libertar do “padrão tradicional de alimentação humana”. Precisei de muita paciência, e ainda preciso, para até hoje escutar “piadas sem graça” sobre porcos, galinhas, vacas e seus derivados ou relatos fervorosos sobre a importância de comer carne ou queijo. As pessoas pensam que, simplesmente por eu ser vegana, estou julgando quem não é ou atacando suas escolhas. Nessa caminhada, tenho refletido bastante sobre a relação entre machismo e carnismo, e como o feminismo e o veganismo estão interligados.
Como diz meu pai, quando tentamos provar uma teoria com poucos dados coletados, “o ‘n’ é pequeno”, mas vou compartilhar dois relatos que reforçam minha teoria sobre machismo e carnismo. Pouco tempo depois que me assumi vegana, estava numa conversa com dois homens que seguiam o perfil do Sobre a Mesa no Instagram, e os comentários que ouvi foram os seguintes: “Você deveria postar mais fotos de biquíni para mobilizar o pessoal a seguir teu perfil e virar também uma referência para a mulherada”. Ainda tive a presença de espírito de responder que não pensava da mesma forma e tentei explicar sobre “meu corpo, minhas regras”. O outro interrompeu e completou: “Então está tudo durinho aí embaixo da roupa, agora que você é vegana?”. E os dois começaram a me mostrar perfis de musas fitness que seguiam no Instagram, como se aquilo fosse me inspirar a me tornar uma delas, insinuando que minha escolha pelo veganismo estava ligada à estética e não a algo mais amplo e intelectual.
Mais recentemente, vivenciei uma manifestação que considero violenta no meu perfil do Sobre a Mesa. Depois de postar um vídeo fofo de um porquinho bebê, com sua família, mexendo o rabinho pra lá e pra cá, e colocar um convite para que as pessoas aderissem à campanha mundial “Segunda Sem Carne”, recebi no direct o seguinte comentário de um homem que conheço no plano real (não exclusivamente virtual): “Já deu vontade de uma pizza de bacon. Tks”. Fiquei horrorizada com essa manifestação e, após bloquear essa pessoa, senti uma maravilhosa sensação de libertação e controle sobre quem terá direito a acompanhar minhas ideias de vida.
Para equilibrar os pratos, não posso deixar de compartilhar que tenho vivido muitas manifestações de inclusão e respeito à minha escolha em momentos de convívio social. Antes, logo que me tornei vegana, há 7 anos, costumava levar minha “marmitinha” para qualquer lugar que fosse, pois era raro encontrar algo para comer em festas de aniversário, almoços, jantares ou até em viagens. Já cheguei a pedir ifood num jantar de aniversário de família, pois nem a salada servida no lugar era adequada para uma vegana. Coloco o verbo no passado porque, atualmente, tenho me surpreendido positivamente com a preocupação das pessoas em preparar algo que eu possa comer. Já fui a festas infantis em que os pais do aniversariante prepararam um cardápio todo especial vegano, e a almoços e jantares em que as pessoas mudaram o cardápio para me incluir. Enfim, tenho vivido cada vez mais manifestações de carinho e atenção a mim e ao veganismo. Penso que, quando vou a algum lugar e a pessoa prepara algo para eu comer, sou aceita, vista, respeitada e incluída. Entendo que essa pessoa quer que eu me sinta bem e parte de tudo.
*
Escrita
Começar a escrever também me trouxe essa mesma sensação de libertação, ainda que até hoje eu sofra censura por alguns temas que escolho ou porque escrevo sobre fatos reais que envolvem pessoas próximas, mesmo que não as identifique ou as exponha abertamente. Me pergunto: que peso e medida seria essa? Eu posso “tranquilamente” viver situações como as que escrevo, mas as pessoas que provocaram essas situações não podem saber que escrevo sobre elas? Devo sofrer pela situação que vivi e sofrer mais uma vez por não poder escrever sobre isso? Escrever, para mim, é organizar as ideias, colocar para fora o que vivi, é um processo terapêutico e, num pensamento bem otimista e romântico, provocar também uma pontinha de mudança em quem lê. Já recebi relatos lindos de mulheres que tiveram forças para enfrentar situações porque leram um relato meu.
*
Pole Dance
Lembro quando comecei a praticar pole dance e como foi difícil para mim ter que me olhar de biquíni todos os dias de prática. Na primeira aula, fui com shorts comprido, blusa e top por baixo. Minha professora me recebeu com um conjunto menor do que os biquínis que eu costumava usar na praia, e eu pensei: “Como ela é segura com seu corpo! Um dia quero ser assim”. Depois entendi que a segurança tem relação com tudo o que já vivemos de “ataques” ao nosso corpo e que ela vai sendo conquistada de dentro para fora.
Desde a minha infância, escutava do meu pai que, como minhas pernas são “tortinhas” (geno varo), eu não deveria usar shorts ou saia porque não “vestiam” em mim. Ouvi de amigas que as calças não me caíam bem porque eu tinha culote. Escutei de um ex-namorado que, quando me conheceu, falou aos amigos: “Ela tem um rosto bonito, mas, tadinha, não dá pra dizer o mesmo do bumbum”. Ouvi até de um médico cirurgião que eu deveria centralizar meu umbigo porque ele está no quadrante da direita. Por todas essas experiências negativas, principalmente durante a adolescência, sofri de bulimia. Era o esforço artificial para ocultar todas as “imperfeições” que as pessoas viam em mim. Só me senti realmente curada do transtorno alimentar quando me tornei mãe. Hoje, mais fortalecida psicologicamente, consigo agradecer por meu corpo ser tão funcional e admirá-lo por ser saudável.
Mas, deixando a parte estética de lado, sem querer minimizá-la, a maior transformação que pude experimentar no pole foi a da coragem e segurança. A cada aula, preciso enfrentar meu medo, procurando estar segura e acionando a minha coragem. Quando supero tudo isso e consigo fazer o movimento esperado, a sensação de superação é contagiante e acabo levando essa equação mágica para qualquer situação que surge no meu dia. Praticar pole dance me transformou em uma pessoa mais amorosa com meu corpo, mais corajosa e me deu de presente pessoas que admiro muito e amo estar perto. Me enxergo com mais de 60 anos ainda subindo na barra e vendo o mundo de ponta-cabeça.
O pole me proporcionou algumas dinâmicas de grupo em que recebi convites para falar sobre relações abusivas. Ouvi muitas histórias de estupro vivenciadas por colegas e como o pole as ajudou nessa libertação do corpo físico e da mente. Na época, lembro de pensar que não me encaixava no grupo de mulheres que havia sofrido esse tipo de violência, e que meu ambiente, felizmente, sempre tinha sido de muito respeito. Hoje, depois de refletir, percebo que, como várias vítimas, vivi um abuso sexual e demorei muito tempo para categorizá-lo. Na época, me senti culpada pelo que vivi e me calei com medo da repercussão e do agressor. Me calei por vergonha também. Ainda que eu não possa ou não consiga falar abertamente sobre minha experiência, ela tem me ajudado a fortalecer minhas filhas para estarem sempre atentas a esse tipo de abuso.
Quando iniciei a praticar pole, lembro de ter sido reprimida e desestimulada a postar meus movimentos nas redes sociais e como tive que me manter firme para fazer aquilo que eu tinha vontade. No início, precisei também escutar muitas “piadas” sobre a relação do pole com a questão sexual da dança, e me esforcei para desmistificar isso. Hoje, já não perco mais tempo explicando que o que menos faço é dançar. Deixo cada um com sua fantasia sobre essa prática que amo tanto e que é tão transformadora para quem experimenta e se identifica.
*
Ideologia
Minhas filhas me deram a oportunidade de me recriar e de me enxergar em vários papéis diferentes. Elas me motivam a ser cada dia mais saudável, e uma mente saudável é uma mente aberta a mudanças. Entre 2019 e 2022, motivadas por questões políticas, mergulhei profundamente com elas nas questões de homofobia, racismo, LGBTQIA+fobia, xenofobia, feminismo, sexismo e misoginia. Perceber o quão naturalmente humanizadas elas são me fez rever várias questões nos meus comportamentos e nas relações que tenho. Me assustei ao perceber como sofri com o machismo estrutural e como fui atacada por ser uma mulher que acredita na sua própria liberdade e na liberdade de todas as mulheres.
Com minhas filhas, principalmente a mais velha, tenho tido algumas conversas, motivadas pelas dúvidas dela, sobre sexo. Nesses momentos, faço questão de deixar claro que, para mim, o sexo é algo bom, positivo, que traz energia vital, porque vivo situações íntimas com quem me sinto bem e me respeita. Mas também explico que cada pessoa tem sua forma de enxergar o sexo. Espero que essas conversas ajudem minhas filhas a se conhecerem, se respeitarem e serem mulheres livres para experimentarem o que desejam.
*
Casa
Acho importante também minhas filhas viverem num ambiente em que mãe e pai contribuam igualmente para as funções da casa. É recente, mas aqui em casa a regra é que, a cada semana, um de nós fique responsável pelas roupas: lavar, estender, tirar do varal, dobrar e avisar para cada um guardar no seu próprio armário. Também estamos procurando equilibrar as funções de preparo de alimentos. E não vale fazer só churrasco! Tem um universo de preparações do cotidiano que acontecem na cozinha e não na churrasqueira. A louça, há muito tempo, já não é uma questão aqui em casa. Até as crianças já entraram na dança!
Essas regras, mesmo que sejam forçadas inicialmente, acredito que vão trazendo um ambiente mais igualitário dentro de casa. Passaremos da regra para a naturalização das funções maternas e paternas. E espero que isso vire uma ação transformadora também em todos os outros âmbitos relacionados à casa e aos componentes da família: idas ao supermercado/feira e tudo o que estiver relacionado com as crianças (levar e buscar na escola, participar de reuniões, de apresentações delas, idas ao médico, dentista, compras de roupas etc). Procuro mostrar que aqui em casa tudo é de todos. A louça não é minha, nem a janta, nem a cozinha, nem a casa, tampouco as roupas. Como tudo é de todos, todos têm suas responsabilidades.
Hoje, faço um esforço para não dobrar as roupas das crianças, não arrumar suas camas, nem seu banheiro, e um esforço extra para esperar que coloquem a mesa para comermos. É difícil, mas quero que elas tenham autonomia e aprendam a valorizar essas funções invisíveis, que só quando não são feitas chamam a atenção.
*
Trabalho
A escolha do meu trabalho me oportunizou também estar imersa num ambiente predominantemente feminino. Todos os dias, converso com mulheres que precisam se organizar para cuidar de sua saúde, da saúde de seus filhos e filhas, da casa e de seus familiares. Conversamos sobre a rotina exaustiva dupla, ou até tripla, de muitas colegas de trabalho. Foi com elas que aprendi a ser mais sensível aos seus problemas, tentando ajudar, não só com conselhos, mas também na função que exerço, flexibilizando prazos de entregas de trabalho ou a jornada de trabalho.
Assim como as ajudo, elas também me ajudam quando preciso, pois entendem perfeitamente as questões inerentes ao universo feminino. Meu universo é sensível, amoroso e empático. E os poucos homens que fazem parte, por uma questão cósmica, também são muito especiais.
*
Considerações Finais
Todas essas mudanças na minha vida pós-casada foram compartilhadas com minha mãe e meu pai, duas pessoas que amo muito e que, além de me apoiarem, me dão suas mãos e, no ritmo deles, estão também mudando junto comigo. Nossa relação hoje está num lugar de parceria, de amorosidade e de verdade.
Encerro este texto deixando claro que não vou parar de mudar… mudar faz parte do crescimento. Mudar é evoluir! E deixo um convite para a desconstrução do estereótipo, criado pelos homens, de feminista que não suporta homens: assim como o veganismo não é sobre nós, e sim sobre os animais, o feminismo não é sobre homens, e sim sobre as mulheres.
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”
– Fernando Pessoa
Agradeço a imagem enviada pelo meu Pai, quando observava o lento nascimento dos filhotes de uma pombinha que fez um ninho em frente à porta da casa.