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Um é pouco, dois é bom, três é…

  • Fernanda Galvão
  • 25 de junho de 2024
Um é pouco, dois é bom, três é…

Sou a filha do meio… a “salsicha do pão”, como me denominavam quando criança. Mal sabia que a “salsicha” se tornaria, depois de me formar em nutrição, anti salsicha. E que, depois de uma outra formação que posso chamar de “pós-graduação da vida na terra”, me tornaria, além de anti salsicha, vegana.

 

Quando pequena, admirava muito minha irmã mais velha. Meu sonho era ser sua melhor amiga. Eu sofria quando ela viajava em suas férias para Brasília e aguardava ansiosa a sua volta, desejando que fosse me abraçar forte e dizer que sentiu minha falta, tanto quanto senti a dela. Além de amar muito a minha irmã, elegi meu irmão mais novo como meu melhor amigo e “boneco preferido”. Ele era convidado para todas as minhas brincadeiras, inclusive as aventuras para reivindicar algo para nosso Pai e nossa Mãe. Um certo dia, depois de saber que eles sairiam de noite e que ficaríamos em casa, decidi não aceitar aquela situação e agir. Peguei uma sacola, coloquei um pijama e algumas calcinhas dentro, desrosqueei o cabo da vassoura, amarrei a sacola nele, me despedi braba de todos da casa e, antes de sair definitivamente, peguei meu irmão pela mão. Eu já tinha visto estas cenas em filmes e consegui reproduzir tudo perfeitamente. Só não havia previsto o medo que me bateu ao sair portão afora com uma criança menor que eu e uma sacola pendurada na ponta de um cabo de vassoura. Além do medo, o universo enviou uma chuva que me fez dar meia volta e apertar a campainha, pedindo para novamente fazer parte daquela família.

 

Lembro de ter muito amor para oferecer naquele universo… lembro de querer agradar todo mundo. Isso tudo me fazia bem. Quando me perguntavam, conversinha de criança para criança, quantos filhos eu gostaria de ter, minha resposta era sempre “três, que nem minha Mãe e meu Pai”.

 

Quando tive minha primeira filha, hoje com 12 anos, lembrei da resposta que eu dava na infância e sorri internamente colocando em dúvida este desejo ingênuo. Talvez o número ideal seja dois e não três. Dois anos depois, engravidei de novo, feliz da vida. Nas duas ocasiões, eu não tinha nenhuma predileção por gênero. Eu simplesmente queria ser Mãe. Como eu tinha tido uma menina, comecei a escutar muito frases que não faziam o menor sentido para mim, e que eu torcia que aquele anjinho que eu já carregava no meu ventre não estivesse escutando: “tomara que agora venha um menino, para terem um casal”, “tomara que venha um menino para o teu marido poder jogar bola”, “seria bom agora um menino porque eles são muito amorosos e cuidadosos com a Mãe… menina rivaliza muitas vezes”. E assim fui escutando estas construções sociais até felizmente descobrir o gênero e trazer para a realidade esta notícia que foge do controle humano. Era mais uma menina!

 

Na minha primeira experiência como Mãe, tinha vivido tantas situações ruins que, nesta segunda experiência, eu já estava fortalecida e decidida a não viver. Estava convicta de que não queria chá de bebê, que não queria ninguém nos visitando na maternidade, exceto a família nuclear minha e do Gui, e que ainda assim, seriam “visitas de médico”. Estava convicta que não daria o peito para a minha filha publicamente, que não aceitaria interferência na forma como a alimentaria, que não aceitaria interferência na forma como eu estabeleceria a sua rotina de mamadas, dormidas e tudo mais. 

 

Realmente a minha segunda filhota veio mudando tudo o que eu já tinha vivido com a minha primeira. A recuperação ao parto foi dificílima. Aos quase 3 anos ela teve pneumonia com derrame pleural e fomos parar na UTI com ela. Somente aos 6 anos que ela começou a dormir a noite toda… enfim, foram várias situações que nos exigiram muito, como Mãe e Pai. 

 

Quando tivemos que decidir o que fazer em relação a métodos contraceptivos, nenhum dos dois conseguiu tomar uma decisão que envolvesse cirurgia. Eu não tinha a segurança de não querer mais filhos. O Gui tinha a segurança de não querer mais filhos, mas não a de se submeter à vasectomia. Estamos nos cuidando desde então, e tem funcionado bem, pois nossa pequena já tem quase 10 anos.

 

Há cerca de 1 ano, retomei a especial função de nutricionista da escola de nossa família. Tenho tido a oportunidade de novamente estar em contato com crianças pequenas e, com meu olhar mais maduro, tenho me encantado muito por todas as descobertas que, especialmente os menores fazem. Acompanhando os almoços deles, tenho levado novidades de preparações, observado suas reações, sua abertura em relação ao novo… temos conversado sobre coisas da vida, misturando realidade e fantasia, e tenho sido convidada, por eles, a parar e observar uma formiga, o céu, os pequenos detalhes da vida. Meu ponto alto do dia profissional é o almoço das crianças. E meu ponto alto do dia pessoal é encontrar minhas filhotas depois de encerrar o trabalho. Sigo sentindo, dentro de mim, aquela abundância de amor e cuidado para oferecer, aquela mesma que eu carregava quando eu era a “salsicha do pão”. O número três já não me provoca medo, cansaço, receios,  preguiça… inclusive simpatizo com a ideia. Não sei o que o universo reserva para nós, mas fico feliz de estar em paz para seguir caminhando sem ter fechado a sete chaves esta porta. Filhos não devem carregar o fardo de virem com gênero específico, o fardo de servirem para fazer companhia ao irmão mais velho, o fardo de servirem para “segurar casamento”, o fardo de nos fazerem evoluir como pessoas… Filhos não devem ter funções diferentes de simplesmente virem ao mundo para serem nossos filhos, por desejo puro de serem parte do nosso mundo e de nós sermos parte do mundo deles.